domingo, 3 de março de 2013

(Memórias Ingênuas)

Nasci na Cidade Velha, bairro de Belém do Pará, no dia 3 de março de 1950. Não gostava de roupa. Tudo fazia para andar nu. Tinha razão. Numa terra de muito calor, quanto menos roupa melhor. Minha foto mais preciosa, ao lado de minha prima Nazinha (Maria de Nazaré), hoje com 71 anos, data de março de l953, em Val-de-Cans, Base Aérea de Belém. 
Naquela época, a Base Aérea de Val-de-Cans parecia mais longe... A 16 km da cidade. Hoje está tudo interligado. Lembro-me de várias áreas cercadas com arame farpado, cheias de sucatas de carros, tanques, jeeps, aviões, tudo deixado pelos norte-americanos que mantiveram uma base de apoio, espécie de trampolim para a África, durante a Segunda Guerra Mundial. Essa história ainda está por ser contada. Não há um livro sobre a presença americana em Belém durante a guerra. Talvez Jarbas Passarinho, do alto dos seus 92 anos, saiba me dizer alguma coisa ou citar algum livro saído nos Estados Unidos. 
As casas da base aérea foram construídas pelo ianques. Tinham poucas paredes, o mais era tela fina para impedir a passagem do carapanã, que infestava  Belém. As ruas eram de uma espécie de lama asfáltica. Havia bosques diante das casas. Minhas primas sempre me levavam para ver os Catalinas (aviões anfíbios), que depois de l958, reformados nos Estados Unidos, formaram um esquadrão especial do Can Amazônia para atender às populações ribeirinhas do Alto Solimões, do Rio Negro e do Rio Javari. Viagens com a FAB entre l975-2003 me possibilitaram resgatar muitas histórias e ler vários livros sobre os tempos heróicos da FAB. Tio Januca, que chefiou a Capelania da Base Aérea de Val-de-Cans, entre l947 e l954, contou-me muito causos. Fora amigo do célebre Brigadeiro Cabral e do coronel Haroldo Veloso, que comandou a Revolta de Jacareacanga, além de amigo do general Zacarias de Assumpção, governador do Pará. Perseguido pelo Baratismo, tio Januca teve que sair às pressas de Belém, fixando-se em Lagoa Santa (MG).
Fui para Val-de-Cans com alguns meses de idade e lá passei até meus 4 anos. Depois vivemos no bairro de Nazaré. Em 1955 deixei Belém, já órfão de pai. Voltei a Belém, todos os anos, entre 1956/1961, viagens de navio. O objetivo maior era assistir ao Círio de Nazaré, devoção de minha mãe. Essa festa religiosa, um verdadeiro Carnaval Devoto pela miscelânea que é... festa profana, procissão, folguedo, comércio, arraial, comilança e bebedeira, chega a dois milhões de pessoas no dia 12 de outubro.
O Círio de Nazaré, de há muito, ganhou renome nacional. Hoje, onde vivem mais de 200 paraenses, certamente, se promove a procissão do Círio como em Copacabana, no Rio de Janeiro, onde vivem uns 5 mil paraenses, outrora chamado de “Exército do Pará”, em que se alistavam Jarbas Passarinho, Osvaldo Orico, Raimundo de Carvalho Chaves, Eneida, entendida em samba e escritora, o jogador Quarentinha, célebre craque do Botafogo nos anos 50/60, Oliveira (lateral do Fluminense), para citar alguns.
Tenho vaga lembrança dos banhos de chuva no quintal de casa e na rua. A foto que guardo foi batida diante de nossa casa em Val-de-Cans. Contava menos de 3 anos. Nunca deixei de tomar banho de chuva. Não mais nu, como quando criança, mas de bermuda. Nos tempos da Fazenda Rosa dos Ventos, em Monerá, aproveitava os aguaceiros para tomar banho e espantar o calor. Gostava também de, em pelo, andar a cavalo entre Monerá e a fazenda, sob os protestos do Tio Januca, uma figura sem espírito de aventura e pouco senso de humor. Nunca me entendi com ele e pior ainda em matéria religiosa, agnóstico que sou desde que me conheço por gente. Nunca tive fé. Padeço por isso num mundo confessional, devoto e pentecostalista. O que posso fazer contra as imposições de minhas leituras devastadoras?
Sigo como o menino que gostava de tomar pelado banho de chuva, mas aprendi a não confiar na humanidade nem acreditar em anjos. O mundo é uma grande tragicomédia, palco de muitos espertalhões que se valem da ingenuidade de tantos para os explorar, confundindo idealismo com burrice. Felizmente, ainda gosto de tomar banho de chuva.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Maria de Bastiãozinho e o caboclo d’água de Lagoa Santa

Fiquei de 1961 a 1982 sem ver Maria de Bastiãozinho, cozinheira lá de casa, em Lagoa Santa (MG), durante cinco anos. Quando a revi, beirava os 90 anos. Toda Rua da Várzea a conhecia. Tornou-se exímia doceira, numa terra de quituteiras de mão cheia e de doceiras de raro paladar como Maria de Zé Galo, Loura da Várzea, Alice de Duarte, Célia de Zezé de Carola, todas célebres no meu tempo de menino. Minha mãe sabia muito sobre a culinária do Pará e do Amazonas, mas em matéria de culinária mineira deixava o comando para Maria de Bastiãozinho, mestra de forno e fogão a lenha, bem caipira, como o de nossa casa, antes ocupada pelo antigo capataz, na entrada da Fazenda do Pastinho, a uns 200 metros da beira da Lagoa Santa. Numa casa de nortistas, longe do pitiú de nossos peixes, gozava de plena liberdade para fazer pratos mineiros, como frango com tutu, angu e couve refogada, vaca atolada, cubu, frango com quiabo e quibebe (hoje sei que se tratava de um refogado de legumes em que entravam mamão, abóbora, umbigo de bananeira, a que se adicionava carne moída, quiabo e angu). Cedinho já estava pronto o café com rapadura. Vibrava no dia que ela fazia broas de milho ou quando fritava banana. Sempre fazia bolos e pudins. No quintal de casa havia nunca menos de 30 galinhas, ovos em abundância.

Na juventude, anos 30, Maria de Bastiãozinho, à maneira de tanta gente de Lagoa Santa, tirava junco de dentro da lagoa, de pouco mais de 6 km de perímetro, para fazer esteira e outras peças artesanais, assim como pescava. Hoje não existe mais junco nem se pode nadar. Em sua pequena canoa, não raro voltava às dez da noite. Lembro-me de seu Raimundo Litro, nosso vizinho, que conhecera Bastiãozinho ainda jovem, provocando-a para que contasse para minha mãe, pela enésima vez, como fora a história do caboclo d’água que lhe deu um susto tão grande que jamais ela voltou a pescar, à noite, na lagoa.

De repente, numa noite de luar, Maria de Bastiãozinho pescava a uns 500 metros do sangradouro da lagoa, quando viu uma mão peluda na borda da canoa. Com o susto, desmaiou. Levou bom tempo para recuperar-se, pegar o remo e remar até à margem, não muito longe de sua casa, na Rua da Várzea (chamada também de Rua de Baixo). Esse episódio ficou célebre e entrou no lendário de Lagoa Santa como dele fazem parte curiosos apelidos de algumas figuras que cheguei a conhecer como Zé Instruído (inspetor do ensino médio), irmão de Lourdes Bispo (telefonista), Luís Bomba, Maria de João Papagaio, Geraldo Precata, Geraldo Meio-Bolo, Abel Gago, Zé Ferro, marido de Camosina, irmã de Alice de Duarte e tantos outros.

Certa feita, alimentei o desejo de estudar a Guarda Moçambique, do bairro Santos Dumont, quando de minhas viagens a Lagoa Santa. Ficou no universo dos sonhos não realizados.

Seria, talvez, uma homenagem inconsciente à afro-brasileira Maria de Bastiãozinho, de quem tanto gostava, de quem recebi incontáveis agrados: doces e quitutes, além de carinho no trato. Já adulto, morando longe de Lagoa Santa, passei a ler sobre ela, seu povo, seus costumes. Quantas lembranças afloraram quando li o livro de Marlene Luzia Viana e Valderez Valle, “Memórias de Lagoa Santa’’. Agora mesmo acabei de ler “P.W. Lund e as grutas com ossos de Lagoa Santa”, dos dinamarqueses Birgitte Holten e Michael Sterll, editado pela UFMG.

Já alimentei o desejo, noutra época, de pesquisar sobre figuras como João Pichuleta, Zé Vital, Dona Isolina, Levi da Lapinha, Lerindo, gente ligada aos moçambiques e congadas de Lagoa Santa. Muito teriam para me contar.

Maria de Bastiãozinho muito me ensinou, reconheço agora, do seu universo afro-mineiro. Aprendi com ela a ter profunda simpatia pela raça negra, a conviver com nossos irmãos que vieram da África. E Minas Gerais tem na sua alma, no seu ethos e no seu pathos, nas suas irmandades religiosas, na sua comida, muito da África. O Brasil deve muitíssimo à raça negra. Com que emoção revi minha “mãe preta”, de quando eu era menino, Maria de Bastiãozinho. Com ela passava a metade do dia. Aprendi a amá-la com a pureza de minha meninice. Quantas vezes, quando partia, à tarde, para sua casa, queria ir junto com ela. No embornal que levava para a aula da mestra Anete Ferreira dos Reis, sempre havia doces feitos por ela. Meu preferido era o doce de laranja-da-terra, colhida em nosso quintal. Fui aluno encapetado, péssimo, ruim de nota, o derradeiro da turma. Vivia indo ou vindo de Belém do Pará. Suas sobrinhas e sobrinhas-netas, bisnetas e trinetas vivem em Lagoa Santa. Sua casinha na Rua da Várzea, singela, menos de 30 metros quadrados, duas portas e três janelas, é uma das imagens ainda presentes de minha infância. Quando revisitar Lagoa Santa, vou parar alguns momentos no singelo túmulo de Maria de Bastiãozinho para um preito de gratidão, de saudade e, quiçá, ali chorar. Sim, chorar a impossibilidade de revê-la, chorar a infância irremediavelmente perdida.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Nunes Pereira, um sábio amazonólogo

Conheci Nunes Pereira na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, lá por 1970. Compulsava eu o "Dicionário do Folclore Brasileiro", do Câmara Cascudo. Vasta cabeleira branca, já na sapiência dos seus oitenta anos, o autor de "Moronguetá - Um Decameron Indígena", percebeu que lia um verbete sobre a Amazônia e não deixou por menos: "Nem sempre o Câmara Cascudo cita que leu isso aí em obras minhas". Sem a vivência e as leituras de hoje, 27 anos depois, nao entendi bem o que queria dizer Nunes Pereira. Hoje sei a distancia que medeia entre os que escrevem por terem visto e vivido, observado e pesquisado e os que fazem somente pesquisa bibliográficas, citando obras alheias. Nunes Pereira, cuja casa na Almirante Alexandrino, frequentei, andou durante mais de 65 anos pela Amazônia. Sua vida foi um eterno escrever artigos, livros, proferir palestras e realizar viagens de estudos pela Amazônia, subindo e descendo rios, os mais distantes.
Funcionário do Ministerio da Agricultura, veterinário por formação, antropólogo e etnologo por vocação, além de literato, Nunes Pereira soube, bem cedo, aliar seu interesse pela pesquisa ao trabalho que realizava pelo interior. Leitor voraz, leu sobre tudo, aprofundou-se na vasta bibliografia sobre a Amazonia. Chegou a formar grande biblioteca, que vendeu, nos anos 70, para o Instituto de Pesquisas da Amazonia (INPA), onde podem ser consultadas.
Não ficou apenas nos temas amazônicos. Estudou os negros de Sao Luis, em "A Casa das Minas", o culto dos Voduns Jeje no Maranhao. Arthur Ramos considerou essa monografia "um conjunto de práticas religiosas e mágicas de um grupo de Negros de Sao Luis onde o estudioso identifica, de logo, a sobrevivência daomeana. Na obra de Nunes Pereira tem-se, porém, o essencial para a constituição de um corpo homogeneo de praticas voduns num ponto do Norte do Brasil".
Josué Montello dedica seu "Os Tambores de São Luís", uma obra basilar para o entendimento da alma e da história maranhenses, a Nunes Pereira. Seus livro estão esgotados. Sua última obra de fôlego, que vi ainda nos originais, foi "Panorama da Alimentação Indígena - Comidas, Bebidas e Tóxicos na Amazônia Brasileira", editada pela Livraria São José, em 1974. Sua obra é muito usada como referencia, mas talvez por nao ter sido ele da panela acadêmica, jamais fez mestrado ou doutorado, pouco se escreveu sobre ele, cuja existência foi longa. Mais de 90 anos.
Quando me preparo para ir ao Maranhão e ao Pará, não posso deixar de evocar a figura de um verdadeiro sábio, à maneira dos naturalistas do século XIX, que tanto amou os índios. Ele era um cafuzo (negro com índio). Quem sabe daí adveio sua longevidade?
Os que o conheceram em vida, como eu, jamais o esquecerão pela sua fala agradável, pela grande cultura, pelo ar generoso, pela cabeleira de poeta, alva, bem tratada, pela pequena estatura que era compensada por sua imensa sabedoria. Onde chegava prendia naturalmente a atenção.
Lembro-me que o acompanhei numa "Semana Nordestina" no MAM do Rio de Janeiro, onde era exibida uma série de filmes sobre o Nordeste, além de grupos de "Boi-Bumbá" do Maranhão, da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Nos intervalos vinham amigos e conhecidos ouvir-lhe a opinião sobre os filmes. Sabia muito sobre o Brasil.
Ainda nao tenho em minha biblioteca um quadro seu em tamanho grande, mas vou providenciar. Lembro-me do que escreveu George Rodenbach sobre os mortos: "Os nossos mortos morrem pela segunda vez quando nós os esquecemos". Não quero cometer esse crime.
Desejo, neste artigo, publicar uma bibliografia parcial de Nunes Pereira para que, meus dois leitores, quando desejarem ler o autor de "Os Índios Maué", saibam o que poderão escolher. Agora em junho, em São Luís, vou visitar a rua São Pantaleão, o Beco das Minas e o Beco do Gavião em homenagem a Nunes Pereira. Já debe estar no chão a "Casa das Minas", que ficava no no. 857, depois de muita subida e descida, indo-se da Praça João Lisboa. Quem sabe encontrarei alguém que possa falar da "Dona Casa" Andressa Maria, preta-velha a quem o Maranhão reverencia. Vou pedir ao presidente da Academia Maranhense de Letras, o escritor Jomar Moraes que me acompanhe pelo bairro de São Pantaleão, quase tão velho quanto São Luís e tão cheio de histórias. Não poderei prestar melhor homenagem a Nunes Pereira, que nascido em São Luís do Maranhão, a 26 de junho de 1893, estaria completando 104 anos.
Nunes Pereira, amigo saudoso, dele guardarei muitas lições e já li a maioria dos livros que me indicou. É preciso reeditar suas obras.

Bibliografia Nunes Pereira

A Pesca no Rio Grande do Nortes.
Ensaio de Etnologia Amazônica
Bahira e suas experiências
Um Naturalista Brasileiro na Amazônia
A Casa das Minas
O Peixe-Boi da Amazônia
O Pirarucu da Amazônia
O Índio - Esse desconhecido
O Shiré e o Marabaixo
Curt Nimuendaju
Introdução a Dramaturgia Indígena
A tartaruga verdadeira da Amazônia
Historia e Vocabulario dos Indios Uioto
Os índios Maué
A ilha de Marajó
Panorama da Alimentação Indigena
Moronguetá - Um Decameron Indígena
Um Peixe Enigmático

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Mila e Catatau, a desigualdade no mundo cão (e noutros mundos)

Há dias, em Florianópolis, visitei no campus da UFSC, na Trindade, o túmulo do Catatau (1997-2009), cão símbolo e mascote, durante 12 anos, daquela universidade. Era um vira-lata, um pobre rafeiro, humilde guaipeca a que a sorte não afagou com uma casa rica, como a de Mila, a cadela setter do escritor Carlos Heitor Cony, hoje parte da literatura como o Fiel, de Guerra Junqueiro, o Gelert, do cardeal Augusto Álvaro da Silva, o Quincas Borba, homônimo do personagem de Machado de Assis, o Arghos, de Ulisses (da Odisséia, de Homero), a Baleia, de Graciliano Ramos, dentre tantos cães que a literatura registrou.

O Catatau não gozava do afeto exclusivo de um dono, como a Mila, nem merecia ração especial, visita de amigos de seu amo. Não. Catatau vivia da caridade pública, das migalhas do restaurante universitário. Não andava de carro nem visitava as famílias de acadêmicos, muito menos dos mestres da UFSC. A amizade acabava no pátio da universidade... Muito bom, muito interessante, sempre abanando a cauda cheia de carrapicho, mas que ficasse no seu mundinho de cão de rua, nada de imiscuir-se com a burguesia, de que recebia tímidos afagos e alguma proteção.

Catatau era um “perro calletero”, como diria Jorge Luis Borges. Mila, uma burguesa urbana, com direito a passeios com Cony pela Lagoa Rodrigo de Freitas. Catatau jamais passeou de barco na Lagoa da Conceição. Desconheço se Franklin Cascaes, que tudo sabia sobre a ilha, falecido em 83, conheceu Catatau. Salim Miguel, o maior escritor de Floripa, nunca escreveu sobre ele. Seu mundo eram os jardins e ruas, praças e saguões da UFSC.

Verdadeiro Manezinho da Ilha, vivenciou o mundinho da Trindade sem jamais sonhar com uma visita a Pântano do Sul, onde seria bem recebido no “Bar do Arante” com postas de peixe, sobras dos turistas. Nunca foi banhar-se no mar da Praia dos Ingleses nem no Saco dos Limões. Seu mondo cane era a Trindade.

Mila nunca fuçou numa lata de lixo, jamais roeu um osso infestado de moscas, jamais urinou em pose vulgar em público, nunca teve intercurso sexual se arrastando pelas ruas. Já Catatau passava horas agarrado ao osso, já sem tutano, que lhe atiravam no RU. Quando arranjava uma namorada mais liberal, enxotavam-no para que namorasse escondido.

A natureza lhe dera anticorpos para vencer as doenças, a podridão e o mofo, o mosquedo e a imundice das latas de lixo.

Catatau e Mila, um paupérrimo, outro afagado pelas benesses de um lar abastado.

Mila visitava a Academia Brasileira de Letras. Catatau, no máximo, ousava entrar na sala de aula e, em silêncio monástico, ali ficava por algum tempo. Chegou a sentar-se na cadeira do reitor para uma foto, ironia suprema, deboche dos acadêmicos em relação à direção. Jamais, por certo, visitou o magnífico reitor para um prato alentado de carne moída com polenta. Muito estimado, mas que ficasse no seu canto. Não tinha status para conviver mais de perto com a “inteligentzia” da universidade. Talvez um dia, por quota, ingressasse no convívio mais próximo do mundo acadêmico e ganhasse uma casinha bem pintada, uma pulguenta, pote d’água e tigela. Agora é tarde. É muito tarde. Catatau é morto.

Mila viera da casa de Adolpho Bloch, gozava de origem nobre. Catatau era filho ignoto, de cães vadios, de mãe que o concebeu sem nenhuma consciência. Algum fã do Zé Colméia lhe dera esse nome. Analfabeto, educou-se precariamente nos pátios da universidade, sempre de oitiva.

Politizou-se nos comícios, a que não faltava. Participou de greves, de protestos nos seus 12 anos de campus. Tinha inimigos gratuitos! Quem não os tem? Não escapei dessa indignidade humana. Tenho os meus. Alguns jamais tiveram meia hora, dez minutos de conversa comigo, mas me detestam e, por certo, até me caluniam. Com o Catatau não foi diferente. No derradeiro momento, algum deles o envenenou, assim “narra” seu biógrafo anônimo, transformado em voz corrente pela boataria, pela conversa de rua.

Catatau não mereceu um monumento de bronze à maneira do cão herói do Alasca, o Balto, no Central Park de Nova Iorque, sim modesto ao alto-relevo em cimento ou massa parecida. Ignoro se, em alguma parte do mundo, em algum campus universitário, há uma homenagem a um cão, como essa ao Catatau, companheiro de lutas dos acadêmicos da Universidade Federal de Santa Catarina, campus de Trindade, em Florianópolis.

Catatau chegou à universidade, mas não pôde gozar de seu status, viveu como favelado no campus, comeu mal, dormiu no cimento frio e na grama cheia de orvalho. Não passou de um vira-lata com proteção precária. Seu sonho de consumo era ser Mila na vida, merecer artigo na “Folha de São Paulo” e as lágrimas de um grande escritor.

Catatau lembra muito as diferenças entre os brasileiros... Uma minoria que tem quase tudo e uma maioria que vive como o Catatau, lúmpen do mundo canino. Catatau e Mila dariam excelente fábula sobre a imensa desigualdade social em que vive nosso povo.

Um dia, esperemos, o Brasil terá mais Milas que Catataus!

sábado, 29 de janeiro de 2011

Um grande livro na praça. Opinião: Villas-Bôas Corrêa



Esta é a história singular de uma amizade epistolar entre o repórter e um ilustre personagem que atende pelo nome de Jorge Baleeiro de Lacerda, residente em Francisco Beltrão, no Paraná. Nunca trocamos um aperto de mão. E por algumas vezes estivemos a poucos metros de distância, numa das suas ruidosas entrevistas no programa de Jô Soares.
A ele coube a iniciativa da primeira carta, lá se vão seis décadas, se não me falha a memória. Coleciono as suas dezenas de cartas em robusto pacote que enche uma das gavetas da desta saleta em que batuco estas linhas.
Baleeiro não dá a menor importância à curiosa amizade sempre à distância.
Mas, esta semana fui surpreendido ao receber pelo correio o seu último livro e o primeiro de uma série que promete ir longe. Com a capa ilustrada em cores, Os Dez Sudoestes, com o sub-título de “Muito Antes e Além Depois” e o aviso de que se trata do volume 1 da série imprevisível.
Um grande livro de 184 páginas em edição caprichada em que conta as muitas histórias dos seus 35 anos de “viagens de estudos pelo Brasil com milhares de artigos publicados”, além do “Os Dez Brasis”, lançado em 1998 e com seis edições.
É um clássico de nascença, que deve bater recordes de venda em muitas edições, além do lançamento do próximo volume já anunciado.
E como é impossível tentar resumir não digo o livro, mas qualquer de seus capítulos, vou ficando no primeiro volume de “Os Dez Sudoestes” .
E começo prestando atenção na capa e especialmente na contracapa, com a foto em cores. Com a impertinência de insistir no conselho de que quem se interessa pelas singularidades deste país continental, várias vezes percorrido em todas as direções por este infatigável Baleeiro, com as suas duas safenas e o vigor de um maratonista, em 2008, em que “andou por todo o Sudoeste em busca das maiores árvores da Região, medindo uma canafístula de 30 metros de altura e dez de circunferência, pouco antes da cidade de Salgado Filho.”
Na pág. 31, o capítulo sobre “Os ervais selvagens do Sudoeste- 1″, Baleeiro registra que “neste ano completo 30 anos que escrevo regularmente para jornais.” Nunca mais parei. Nestes 30 anos, talvez tenha escrito uns 3 mil artigos. Nunca falhei uma semana sequer. Mesmo assim, ocorre com alguma freqüência encontrar artigos perdidos dentro de livros; em gavetas, sob pilhas de papel, ocultos em envelopes como o elaborado “Os Ervais Selvagens do Sudoeste do Parafina, que me demandou muita pesquisa, viagens a Barracão, a Santo Antônio. Lembro-me das caronas com o Professor Aloísio Antonio, então na Comfrabel, nos anos 76/77”.
E o lembrete curioso: “Nesta e na próxima semana, os leitores vão ler o artigo inédito que escrevi nos idos de 82/83 e que repousava em minha biblioteca em meio a milhares de papéis. As citações em castelhano são necessárias para dar a exata expressão do que desejou dizer Alfredo Varela:” O Paraná ainda não tem um “grande livro” sequer sobre os seus ciclos econômicos. Nenhum clássico sobre o Tropeirismo nem sobre o Ciclo da Erva-Mate. Nem do ciclo da madeira, já em fase terminal “.
Baleeiro tem uma boa história sobre “As potreadas da Coluna Prestes em Campo Erê (SC)”. Conta : “Há uns dez anos, pela primeira vez, andei pela, região de Campo Erê (SC), Rio Capetinga, juntamente com o fazendeiro João Neir Pontes Rocha, filho de Néri Rocha Loures e neto de Antonio Rocha Loures, cuja Fazenda São Vicente, em 1925, a Coluna Prestes invadiu (um eufemismo para saquear). Não se sabe bem se foram 200 ou 300 bois, talvez menos. A verdade é q ue o Rocha faliu. O gado gordo que levaria para uma charqueada em Passo Fundo, virou em grande parte,”churrasco” para a tropa revoltosa. O dono as fazenda fugiu para Clevelândia, que Prestes desejava tomar, mas não conseguiu”.


O mais no Os Dez Sudoestes, de Jorge Baleeiro de Lacerda.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Baleeiro lança seu novo livro: "Os Dez Sudoestes"

Fonte: Jornal de Beltrão

Contrário a participar de qualquer tipo de evento que reúna muitas pessoas, Jorge Baleeiro de Lacerda fez o lançamento de seu novo livro — Os Dez Sudoestes — bem ao seu estilo, numa propriedade do interior onde reside uma família que mantém velhos costumes da roça.
Somente a família, hoje composta por duas pessoas, e o prefeito Wilmar Reichembah, que reprogramou uma reunião com seu secretariado para a manhã de hoje e assim teve tempo de, ontem à tarde, acompanhar Baleeiro no evento inusitado: um lançamento de livro sem discursos, sem fila para autógrafos nem coquetel, nem solicitação do autor para entrevistas e sessão de fotos.
Baleeiro conhece a família dos Taquarianos, na Linha Farroupilha, interior de Francisco Beltrão, há muitos anos e seguido tem visitado aquela gente simples que, mesmo possuindo boa área de terra — 28 alqueires — e boas lavouras e criações, mantém costumes antigos, começando pela casa de chão batido.
“Eu tava com uma saudade de tu”, disse José Pinto de Oliveira, o taquariano (natural de Taquara, RS), de 87 anos. Ficou feliz com a visita. Tinha chegado há pouco da roça. “Ele foi limpar batata”, disse a filha Pidade, de 59 anos, solteira, única companhia de seu pai. “Ele subiu (o morro da roça) era dez horas e voltou depois da uma e meia.” Eram 15:30 e os dois ainda não tinha almoçado.
Ao receber, de Baleeiro, um exemplar do livro, Piedade exlamou: “Olha ati (aqui) a minha mãe, toitada (coitada), é faletida (falecida)”.
“Desnecessário dizer-lhes, meus dois leitores, que cultivo profunda simpatia pelos Taquarianos. Seo José e sua filha Piedade exemplificam bem a singeleza da vida cabocla”, escreveu Baleeiro na página 123 de Os Dez Sudoestes, muito antes e além depois.
O prefeito Wilmar Reichembach também simpatizou com a família. Junto com Janir Cella e Ivo Pegoraro, foi ver a sala, a dispensa, os quartos da casa, mais um galpão onde é moída cana-de-açúcar e onde carneiam porco, paiol, chiqueiro, o terreiro com galinhas cisando, cachorros, vacas pastando na sombra de guaviroveiras carregadas de frutas e, ao redor, morros cobertos com árvores e pinheiros. A visita demorou mais de uma hora e só então, 17:40, Piedade fez fogo, com sabugo de milho e lenha, para cozinhar arroz com carne de porco, para o almoço dela e de seu pai.
Aos visitantes eles também ofereceram chimarrão, cachaça, balas e um café diferente que eles produzem.
Sentado num banquinho de quatro pés, numa tábua trabalhada que ele diz ser herança de seu pai, José Taquaraiano pergunta quanto custa o exemplar do livro que Jorge Baleeiro está lhe entregando. “Não custa nada, é um presente pro senhor.” “Não vai custar nada? Então, Deus ajude.

Os Dez Sudoestes

Em Os Dez Brasis, Jorge Baleeiro de Lacerda publica artigos que ele escreveu sobre os mais variados assuntos e regiões do Brasil. Nos Dez Sudoestes, artigos sobre o Sudoeste do Paraná já publicados na imprensa.
Nesta primeira edição — que já anuncia o volume 2, pela quantidade de artigos ainda não publicados, além da produção do autor, que continua — tem 184 páginas, todas voltadas para o Sudoeste.
Os Dez Sudoestes muito antes e além depois, de Jorge Baleeiro de Lacerda, lançado pelo projeto Sudoeste em Livros do Jornal de Beltrão, já pode ser encontrado nas livrarias e bancas de revista da cidade.

Piedade e seu pai José, Jorge Baleeiro e o prefeito Reichembach, na cozinha de chão batido da família que reside na Linha Farroupilha.

Piedade e seu pai José, Jorge Baleeiro e o prefeito Reichembach, na cozinha de chão batido da família que reside na Linha Farroupilha.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Apresentação

Jorge Baleeiro de Lacerda, desde que se entende por gente, é um andarilho do Brasil. Leitor infatigável, devora pilhas de livros com gula de esfomeado, nas muitas línguas que domina graças à obstinação com que enfrenta os desafios da vida. Andou trocando de residência com a inquietação que só assentou na casa armada em torno da biblioteca, no sossego do Sudoeste paranaense, milagre do aconchego doméstico, da maturidade curtida no remanso da família.
Mas, Baleeiro não para. Cutucado pela ânsia de conferir leituras, conhecer e rever lugares, inventa pretextos para viajar, embrenhando-se nos esconsos e voltando renovado.
Toda essa fantástica experiência de vida, lastreada por ampla cultura, vem sendo depositada, anos após anos, em quase três décadas, nos milhares de artigos, de texto impecável, com as graças do estilo próprio, reconhecível como maca registrada, publicadas na página cativa Aldeia Global" da "Folha do Sudoeste".
E afinal, antes que o tesouro espalhado se perca, lança seu livro de estréia, resultado da garimpagem que buscou reunir as peças para a montagem do grande painel do Brasil. O sumo de milhares de leituras, da observação pessoal, do que viu com os olhos, a inteligência e o coração nas andanças de um engolidor de léguas. A cavalo, de ônibus, de navio, de canoa, de carro, pegando carona, de trem e de avião.
Mais do que um livro, é uma lição de Brasil. Aula de mestre no no seu ofício.

Villas- Boas Correa
Jornalista, Colunista do "Jornal do Brasil" (Rio de Janeiro), comentarista político da TV Manchete, ex-chefe da sucursal de "O Estado de São Paulo", no Rio de Janeiro. Sua coluna é lida pelas mais altas autoridades do país. Seu texto é citado como modelo nas Faculdades de Jornalismo do Brasil. Considerado dentre os 10 mais importantes jornalistas do Brasil.

paper men, early 20th century

Jornaleiros do ínicio do século xx

Foto: Marc Ferrez



"Os Dez Brasis", de Jorge Baleeiro de Lacerda, é uma obra de muita vivência do autor, que é um intelectual irrequieto. Andou por este Brasil rico e desequilibrado, escrevendo compulsivamente mais de 3 mil artigo. A sua experiência não provém somente da leitura sistemática de livros sobre o país dos contrastes, mas também de um convívio com as nossas mais diversas regiões, onde habita, apestar de tudo, um povo notável. Com texto elegante e fotos que enriquecem a obra, conseguiu realizar um trabalho bem feito e atraente, sucesso garantido.


Arnaldo Niskier

Ex-presidente da "Academia Brasileira de Letras", ex-secretário de Educação do Rio de Janeiro (1979/1983), ex-secretário de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro(1968/1971), membro do Conselho Federal de Educação, escritor e jornalista, autor de obras como "Educação Brasileira - 500 anos de História", "Brasil, ano 2000 - Educação", "A Educação na virada do Século" dentre outras.


Academia Brasileira de Letras RJ

Sede da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro



"Os Dez Brasis", coletânea de artigos reunidos num livro magistralmente escrito (ao longo dos anos) por Jorge Baleeiro de Lacerda, preenche, por inteiro, um vácuo existente, de há muito, em nossos meios literários.

Na atual crise mundial, esta obra é de vital importância. Se todos os extratos da nação pudessem esquecer por um instante seus conflitos e se dedicassem à sua leitura, sem idéias preconcebidas, iriam adquirir uma visão mais saudável dos problemas nacionais, pois, neste livro, as diversidades do povo brasileiro, sua salutar e rica miscigenação, as diferenças culturais de suas etnias são abordadas de forma lúcida e isenta.

Mergulhando por mais de 25 anos em viagens de estudos por todo o país, com mais de 2,5 mil artigos publicados, além de inúmeras conferências realizadas, como sábio humanista que é, esse ilustre intelectual, vem nos brindar agora com este trabalho que, por certo, servirá de deleito aqueles que se inebriam com as coisas do nosso país.

Estudioso, versátil, conhecedor de todo Brasil, de acurado espírito crítico, Baleeiro, demonstra sua sensibilidade ao eleger este tema tão profundo e eclético, para retratar a gente brasileira.

O escritor, ensaísta e pesquisador Baleeiro, profundo conhecedor da Amazônia, caboclo que é, mesmo vivendo no sul do país, no Paraná, não perdeu seus laços originais, o gosto nem a acuidade sensitiva no trato dos problemas da Amazônia e do país, brindando-nos com um mosaico repleto de brasilidade, que é o livro "Os Dez Brasis".


Bernardo Cabral

Ex-senador pelo Estado do Amazonas, ex- Ministro da Justiça do Brasil, advogado, escritor, ex-presidente da OAB, ex-deputado federal pelo Amazonas, membro de vários institutos culturais, Relator da Assembléia Nacional Constituinte.

Como comprar o livro?

jottanullus@hotmail.com