domingo, 3 de março de 2013
(Memórias Ingênuas)
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
Maria de Bastiãozinho e o caboclo d’água de Lagoa Santa
Fiquei de 1961 a 1982 sem ver Maria de Bastiãozinho, cozinheira lá de casa, em Lagoa Santa (MG), durante cinco anos. Quando a revi, beirava os 90 anos. Toda Rua da Várzea a conhecia. Tornou-se exímia doceira, numa terra de quituteiras de mão cheia e de doceiras de raro paladar como Maria de Zé Galo, Loura da Várzea, Alice de Duarte, Célia de Zezé de Carola, todas célebres no meu tempo de menino. Minha mãe sabia muito sobre a culinária do Pará e do Amazonas, mas em matéria de culinária mineira deixava o comando para Maria de Bastiãozinho, mestra de forno e fogão a lenha, bem caipira, como o de nossa casa, antes ocupada pelo antigo capataz, na entrada da Fazenda do Pastinho, a uns 200 metros da beira da Lagoa Santa. Numa casa de nortistas, longe do pitiú de nossos peixes, gozava de plena liberdade para fazer pratos mineiros, como frango com tutu, angu e couve refogada, vaca atolada, cubu, frango com quiabo e quibebe (hoje sei que se tratava de um refogado de legumes em que entravam mamão, abóbora, umbigo de bananeira, a que se adicionava carne moída, quiabo e angu). Cedinho já estava pronto o café com rapadura. Vibrava no dia que ela fazia broas de milho ou quando fritava banana. Sempre fazia bolos e pudins. No quintal de casa havia nunca menos de 30 galinhas, ovos em abundância.
Na juventude, anos 30, Maria de Bastiãozinho, à maneira de tanta gente de Lagoa Santa, tirava junco de dentro da lagoa, de pouco mais de 6 km de perímetro, para fazer esteira e outras peças artesanais, assim como pescava. Hoje não existe mais junco nem se pode nadar. Em sua pequena canoa, não raro voltava às dez da noite. Lembro-me de seu Raimundo Litro, nosso vizinho, que conhecera Bastiãozinho ainda jovem, provocando-a para que contasse para minha mãe, pela enésima vez, como fora a história do caboclo d’água que lhe deu um susto tão grande que jamais ela voltou a pescar, à noite, na lagoa.
De repente, numa noite de luar, Maria de Bastiãozinho pescava a uns 500 metros do sangradouro da lagoa, quando viu uma mão peluda na borda da canoa. Com o susto, desmaiou. Levou bom tempo para recuperar-se, pegar o remo e remar até à margem, não muito longe de sua casa, na Rua da Várzea (chamada também de Rua de Baixo). Esse episódio ficou célebre e entrou no lendário de Lagoa Santa como dele fazem parte curiosos apelidos de algumas figuras que cheguei a conhecer como Zé Instruído (inspetor do ensino médio), irmão de Lourdes Bispo (telefonista), Luís Bomba, Maria de João Papagaio, Geraldo Precata, Geraldo Meio-Bolo, Abel Gago, Zé Ferro, marido de Camosina, irmã de Alice de Duarte e tantos outros.
Certa feita, alimentei o desejo de estudar a Guarda Moçambique, do bairro Santos Dumont, quando de minhas viagens a Lagoa Santa. Ficou no universo dos sonhos não realizados.
Seria, talvez, uma homenagem inconsciente à afro-brasileira Maria de Bastiãozinho, de quem tanto gostava, de quem recebi incontáveis agrados: doces e quitutes, além de carinho no trato. Já adulto, morando longe de Lagoa Santa, passei a ler sobre ela, seu povo, seus costumes. Quantas lembranças afloraram quando li o livro de Marlene Luzia Viana e Valderez Valle, “Memórias de Lagoa Santa’’. Agora mesmo acabei de ler “P.W. Lund e as grutas com ossos de Lagoa Santa”, dos dinamarqueses Birgitte Holten e Michael Sterll, editado pela UFMG.
Já alimentei o desejo, noutra época, de pesquisar sobre figuras como João Pichuleta, Zé Vital, Dona Isolina, Levi da Lapinha, Lerindo, gente ligada aos moçambiques e congadas de Lagoa Santa. Muito teriam para me contar.
Maria de Bastiãozinho muito me ensinou, reconheço agora, do seu universo afro-mineiro. Aprendi com ela a ter profunda simpatia pela raça negra, a conviver com nossos irmãos que vieram da África. E Minas Gerais tem na sua alma, no seu ethos e no seu pathos, nas suas irmandades religiosas, na sua comida, muito da África. O Brasil deve muitíssimo à raça negra. Com que emoção revi minha “mãe preta”, de quando eu era menino, Maria de Bastiãozinho. Com ela passava a metade do dia. Aprendi a amá-la com a pureza de minha meninice. Quantas vezes, quando partia, à tarde, para sua casa, queria ir junto com ela. No embornal que levava para a aula da mestra Anete Ferreira dos Reis, sempre havia doces feitos por ela. Meu preferido era o doce de laranja-da-terra, colhida em nosso quintal. Fui aluno encapetado, péssimo, ruim de nota, o derradeiro da turma. Vivia indo ou vindo de Belém do Pará. Suas sobrinhas e sobrinhas-netas, bisnetas e trinetas vivem em Lagoa Santa. Sua casinha na Rua da Várzea, singela, menos de 30 metros quadrados, duas portas e três janelas, é uma das imagens ainda presentes de minha infância. Quando revisitar Lagoa Santa, vou parar alguns momentos no singelo túmulo de Maria de Bastiãozinho para um preito de gratidão, de saudade e, quiçá, ali chorar. Sim, chorar a impossibilidade de revê-la, chorar a infância irremediavelmente perdida.
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
Nunes Pereira, um sábio amazonólogo
terça-feira, 11 de outubro de 2011
Mila e Catatau, a desigualdade no mundo cão (e noutros mundos)
Há dias, em Florianópolis, visitei no campus da UFSC, na Trindade, o túmulo do Catatau (1997-2009), cão símbolo e mascote, durante 12 anos, daquela universidade. Era um vira-lata, um pobre rafeiro, humilde guaipeca a que a sorte não afagou com uma casa rica, como a de Mila, a cadela setter do escritor Carlos Heitor Cony, hoje parte da literatura como o Fiel, de Guerra Junqueiro, o Gelert, do cardeal Augusto Álvaro da Silva, o Quincas Borba, homônimo do personagem de Machado de Assis, o Arghos, de Ulisses (da Odisséia, de Homero), a Baleia, de Graciliano Ramos, dentre tantos cães que a literatura registrou.
O Catatau não gozava do afeto exclusivo de um dono, como a Mila, nem merecia ração especial, visita de amigos de seu amo. Não. Catatau vivia da caridade pública, das migalhas do restaurante universitário. Não andava de carro nem visitava as famílias de acadêmicos, muito menos dos mestres da UFSC. A amizade acabava no pátio da universidade... Muito bom, muito interessante, sempre abanando a cauda cheia de carrapicho, mas que ficasse no seu mundinho de cão de rua, nada de imiscuir-se com a burguesia, de que recebia tímidos afagos e alguma proteção.
Catatau era um “perro calletero”, como diria Jorge Luis Borges. Mila, uma burguesa urbana, com direito a passeios com Cony pela Lagoa Rodrigo de Freitas. Catatau jamais passeou de barco na Lagoa da Conceição. Desconheço se Franklin Cascaes, que tudo sabia sobre a ilha, falecido em 83, conheceu Catatau. Salim Miguel, o maior escritor de Floripa, nunca escreveu sobre ele. Seu mundo eram os jardins e ruas, praças e saguões da UFSC.
Verdadeiro Manezinho da Ilha, vivenciou o mundinho da Trindade sem jamais sonhar com uma visita a Pântano do Sul, onde seria bem recebido no “Bar do Arante” com postas de peixe, sobras dos turistas. Nunca foi banhar-se no mar da Praia dos Ingleses nem no Saco dos Limões. Seu mondo cane era a Trindade.
Mila nunca fuçou numa lata de lixo, jamais roeu um osso infestado de moscas, jamais urinou em pose vulgar em público, nunca teve intercurso sexual se arrastando pelas ruas. Já Catatau passava horas agarrado ao osso, já sem tutano, que lhe atiravam no RU. Quando arranjava uma namorada mais liberal, enxotavam-no para que namorasse escondido.
A natureza lhe dera anticorpos para vencer as doenças, a podridão e o mofo, o mosquedo e a imundice das latas de lixo.
Catatau e Mila, um paupérrimo, outro afagado pelas benesses de um lar abastado.
Mila visitava a Academia Brasileira de Letras. Catatau, no máximo, ousava entrar na sala de aula e, em silêncio monástico, ali ficava por algum tempo. Chegou a sentar-se na cadeira do reitor para uma foto, ironia suprema, deboche dos acadêmicos em relação à direção. Jamais, por certo, visitou o magnífico reitor para um prato alentado de carne moída com polenta. Muito estimado, mas que ficasse no seu canto. Não tinha status para conviver mais de perto com a “inteligentzia” da universidade. Talvez um dia, por quota, ingressasse no convívio mais próximo do mundo acadêmico e ganhasse uma casinha bem pintada, uma pulguenta, pote d’água e tigela. Agora é tarde. É muito tarde. Catatau é morto.
Mila viera da casa de Adolpho Bloch, gozava de origem nobre. Catatau era filho ignoto, de cães vadios, de mãe que o concebeu sem nenhuma consciência. Algum fã do Zé Colméia lhe dera esse nome. Analfabeto, educou-se precariamente nos pátios da universidade, sempre de oitiva.
Politizou-se nos comícios, a que não faltava. Participou de greves, de protestos nos seus 12 anos de campus. Tinha inimigos gratuitos! Quem não os tem? Não escapei dessa indignidade humana. Tenho os meus. Alguns jamais tiveram meia hora, dez minutos de conversa comigo, mas me detestam e, por certo, até me caluniam. Com o Catatau não foi diferente. No derradeiro momento, algum deles o envenenou, assim “narra” seu biógrafo anônimo, transformado em voz corrente pela boataria, pela conversa de rua.
Catatau não mereceu um monumento de bronze à maneira do cão herói do Alasca, o Balto, no Central Park de Nova Iorque, sim modesto ao alto-relevo em cimento ou massa parecida. Ignoro se, em alguma parte do mundo, em algum campus universitário, há uma homenagem a um cão, como essa ao Catatau, companheiro de lutas dos acadêmicos da Universidade Federal de Santa Catarina, campus de Trindade, em Florianópolis.
Catatau chegou à universidade, mas não pôde gozar de seu status, viveu como favelado no campus, comeu mal, dormiu no cimento frio e na grama cheia de orvalho. Não passou de um vira-lata com proteção precária. Seu sonho de consumo era ser Mila na vida, merecer artigo na “Folha de São Paulo” e as lágrimas de um grande escritor.
Catatau lembra muito as diferenças entre os brasileiros... Uma minoria que tem quase tudo e uma maioria que vive como o Catatau, lúmpen do mundo canino. Catatau e Mila dariam excelente fábula sobre a imensa desigualdade social em que vive nosso povo.
Um dia, esperemos, o Brasil terá mais Milas que Catataus!
sábado, 29 de janeiro de 2011
Um grande livro na praça. Opinião: Villas-Bôas Corrêa
sábado, 15 de janeiro de 2011
Baleeiro lança seu novo livro: "Os Dez Sudoestes"
Contrário a participar de qualquer tipo de evento que reúna muitas pessoas, Jorge Baleeiro de Lacerda fez o lançamento de seu novo livro — Os Dez Sudoestes — bem ao seu estilo, numa propriedade do interior onde reside uma família que mantém velhos costumes da roça.
Somente a família, hoje composta por duas pessoas, e o prefeito Wilmar Reichembah, que reprogramou uma reunião com seu secretariado para a manhã de hoje e assim teve tempo de, ontem à tarde, acompanhar Baleeiro no evento inusitado: um lançamento de livro sem discursos, sem fila para autógrafos nem coquetel, nem solicitação do autor para entrevistas e sessão de fotos.
Baleeiro conhece a família dos Taquarianos, na Linha Farroupilha, interior de Francisco Beltrão, há muitos anos e seguido tem visitado aquela gente simples que, mesmo possuindo boa área de terra — 28 alqueires — e boas lavouras e criações, mantém costumes antigos, começando pela casa de chão batido.
“Eu tava com uma saudade de tu”, disse José Pinto de Oliveira, o taquariano (natural de Taquara, RS), de 87 anos. Ficou feliz com a visita. Tinha chegado há pouco da roça. “Ele foi limpar batata”, disse a filha Pidade, de 59 anos, solteira, única companhia de seu pai. “Ele subiu (o morro da roça) era dez horas e voltou depois da uma e meia.” Eram 15:30 e os dois ainda não tinha almoçado.
Ao receber, de Baleeiro, um exemplar do livro, Piedade exlamou: “Olha ati (aqui) a minha mãe, toitada (coitada), é faletida (falecida)”.
“Desnecessário dizer-lhes, meus dois leitores, que cultivo profunda simpatia pelos Taquarianos. Seo José e sua filha Piedade exemplificam bem a singeleza da vida cabocla”, escreveu Baleeiro na página 123 de Os Dez Sudoestes, muito antes e além depois.
O prefeito Wilmar Reichembach também simpatizou com a família. Junto com Janir Cella e Ivo Pegoraro, foi ver a sala, a dispensa, os quartos da casa, mais um galpão onde é moída cana-de-açúcar e onde carneiam porco, paiol, chiqueiro, o terreiro com galinhas cisando, cachorros, vacas pastando na sombra de guaviroveiras carregadas de frutas e, ao redor, morros cobertos com árvores e pinheiros. A visita demorou mais de uma hora e só então, 17:40, Piedade fez fogo, com sabugo de milho e lenha, para cozinhar arroz com carne de porco, para o almoço dela e de seu pai.
Aos visitantes eles também ofereceram chimarrão, cachaça, balas e um café diferente que eles produzem.
Sentado num banquinho de quatro pés, numa tábua trabalhada que ele diz ser herança de seu pai, José Taquaraiano pergunta quanto custa o exemplar do livro que Jorge Baleeiro está lhe entregando. “Não custa nada, é um presente pro senhor.” “Não vai custar nada? Então, Deus ajude.
Os Dez Sudoestes
Em Os Dez Brasis, Jorge Baleeiro de Lacerda publica artigos que ele escreveu sobre os mais variados assuntos e regiões do Brasil. Nos Dez Sudoestes, artigos sobre o Sudoeste do Paraná já publicados na imprensa.
Nesta primeira edição — que já anuncia o volume 2, pela quantidade de artigos ainda não publicados, além da produção do autor, que continua — tem 184 páginas, todas voltadas para o Sudoeste.
Os Dez Sudoestes muito antes e além depois, de Jorge Baleeiro de Lacerda, lançado pelo projeto Sudoeste em Livros do Jornal de Beltrão, já pode ser encontrado nas livrarias e bancas de revista da cidade.
Piedade e seu pai José, Jorge Baleeiro e o prefeito Reichembach, na cozinha de chão batido da família que reside na Linha Farroupilha.
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
Apresentação
Jornaleiros do ínicio do século xx
Foto: Marc Ferrez
"Os Dez Brasis", de Jorge Baleeiro de Lacerda, é uma obra de muita vivência do autor, que é um intelectual irrequieto. Andou por este Brasil rico e desequilibrado, escrevendo compulsivamente mais de 3 mil artigo. A sua experiência não provém somente da leitura sistemática de livros sobre o país dos contrastes, mas também de um convívio com as nossas mais diversas regiões, onde habita, apestar de tudo, um povo notável. Com texto elegante e fotos que enriquecem a obra, conseguiu realizar um trabalho bem feito e atraente, sucesso garantido.
Arnaldo Niskier
Ex-presidente da "Academia Brasileira de Letras", ex-secretário de Educação do Rio de Janeiro (1979/1983), ex-secretário de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro(1968/1971), membro do Conselho Federal de Educação, escritor e jornalista, autor de obras como "Educação Brasileira - 500 anos de História", "Brasil, ano 2000 - Educação", "A Educação na virada do Século" dentre outras.
Sede da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro
"Os Dez Brasis", coletânea de artigos reunidos num livro magistralmente escrito (ao longo dos anos) por Jorge Baleeiro de Lacerda, preenche, por inteiro, um vácuo existente, de há muito, em nossos meios literários.
Na atual crise mundial, esta obra é de vital importância. Se todos os extratos da nação pudessem esquecer por um instante seus conflitos e se dedicassem à sua leitura, sem idéias preconcebidas, iriam adquirir uma visão mais saudável dos problemas nacionais, pois, neste livro, as diversidades do povo brasileiro, sua salutar e rica miscigenação, as diferenças culturais de suas etnias são abordadas de forma lúcida e isenta.
Mergulhando por mais de 25 anos em viagens de estudos por todo o país, com mais de 2,5 mil artigos publicados, além de inúmeras conferências realizadas, como sábio humanista que é, esse ilustre intelectual, vem nos brindar agora com este trabalho que, por certo, servirá de deleito aqueles que se inebriam com as coisas do nosso país.
Estudioso, versátil, conhecedor de todo Brasil, de acurado espírito crítico, Baleeiro, demonstra sua sensibilidade ao eleger este tema tão profundo e eclético, para retratar a gente brasileira.
O escritor, ensaísta e pesquisador Baleeiro, profundo conhecedor da Amazônia, caboclo que é, mesmo vivendo no sul do país, no Paraná, não perdeu seus laços originais, o gosto nem a acuidade sensitiva no trato dos problemas da Amazônia e do país, brindando-nos com um mosaico repleto de brasilidade, que é o livro "Os Dez Brasis".
Bernardo Cabral
Ex-senador pelo Estado do Amazonas, ex- Ministro da Justiça do Brasil, advogado, escritor, ex-presidente da OAB, ex-deputado federal pelo Amazonas, membro de vários institutos culturais, Relator da Assembléia Nacional Constituinte.